Quem me dera agora eu tivesse um festival para cantar
Com um formato simples - entrevistas e imagens de arquivo - o documentário acerta ao ter uma proposta objetiva: retratar um acontecimento, dentro de seu contexto histórico. O diretor Ricardo Calil lembra o conselho de João Moreira Salles, produtor do filme pela Videofilmes : "se você quer fazer um filme sobre o correio, você faz o filme sobre uma carta". Graças à parceria com a Record Entrenimento, o filme traz cenas das entrevistas nos bastidores e as apresentações na íntegra e remasterizadas, transformando a sala de cinema no teatro Record daquela noite. É de se observar, no entanto, que apesar daquele festival envolver nomes como a apresentadora Cidinha Campos, a cantora Maria Medalha (intérprete junto a Edu Lobo na música vencedora "Ponteio"), Elis Regina e Nara Leão - que embora não tenham se apresentado naquela final foram importantes nomes da música brasileira-, nenhuma mulher é entrevistada no filme.
O filme leva o espectador de volta a década de 1960, quando a Guerra Fria trazia o embate entre o modelo capitalista e o socialista e, acreditando-se próxima a um governo de esquerda, as bandeiras da juventude ganhavam ares de “revolução”. A chegada da ditadura militar em 64 foi um balde de água fria para os militantes que depositaram suas esperanças em ver o “povo” no poder. Por um lado, a repressão do governo fez calar aqueles que atrapalhavam os interesses do regime e, por outro, possibilitou a consolidação no país de uma indústria cultural nos moldes norte-americanos. Enquanto Roberto Carlos e a Jovem Guarda embalavam as tardes de domingo de grande parte da juventude daquela época, artistas considerados engajados, como Geraldo Vandré, Chico Buarque e Edu Lobo, intensificavam o processo de nacionalização e politização na chamada música popular. Porém, se alguns consideravam qualquer influência cultural estrangeira uma ameaça à resistência ao regime militas, os baianos mostraram no Rio de Janeiro que a sociedade poderia ser um pouco mais complexa, misturando berimbau com guitarras elétricas e propondo um estilo musical que deu novos rumos à música brasileira naquele momento.
Sem grandes pretensões de ser um marco “político, musical, histórico, transcendental”, segundo o diretor da Record Paulinho Machado de Carvalho, e tomar a proporção que tomou, os festivais tinham naquela época um papel semelhante ao da novela nos dias de hoje. Com a chegada da televisão no país, o conteúdo do rádio começava a migrar para o formato audiovisual e os festivais se tornaram importantes vitrines para músicos como Elis Regina, Jair Rodrigues, Tim Maia, Nara Leão, entre muitos outros. No filme, Paulinho Machado conta que sua preocupação era “fazer o festival dar certo, em termos de produção”, em meio a ânimos tão exaltados. Entre as pérolas do festival (e do filme), está a cena em que Sérgio Ricardo, revoltado com as vaias que o impediam de cantar, quebra o violão no palco e o atira na platéia, sendo desclassificado em seguida. Em entrevista nos bastidores, Roberto Carlos brinca: “Ponteio (música vencedora, que tinha como refrão "quem me dera agora eu tivesse uma viola pra cantar") foidesclassificado porque não tem mais viola pra cantar: O Sergio Ricardo quebrou”.
As vaias tinham cadeira cativa nas apresentações. Para a jornalista Ana Paula Sousa, da Folha de São Paulo, era um Brasil que, “calado pela ditadura, parecia disposto a vaiar quem quer que fosse, de Roberto Carlos a Caetano Veloso”. As disputas políticas em torno da música popular brasileira eram refletidas no palco e principalmente na plateia organizada, que dava ares de final de Copa do Mundo à competição. A própria organização do festival e a seleção dos finalistas lembrava ringues de batalha entre “personagens”: Chico Buarque, o mocinho; Roberto Carlos, o galã; Edu Lobo, o politizado; Caetano e Gil, os baderneiros. Zuza Homem de Mello, técnico de som da Record no festival e consultor do filme, conta que “a plateia estava a fim de destruir as músicas de que não gostava, muitas vezes por razões políticas. Era um tipo de fanatismo que nunca tínhamos visto em um festival”.
Nos dias de hoje, sem iminência da repressão militar e com novela de sobra na televisão, ouvimos muitas vezes o discurso de que “não se faz mais política e cultura como antigamente”. No entanto, com as possibilidades de produção e circulação cultural ampliadas pelas novas tecnologias, observa-se o contrário: uma enorme proliferação de artistas independentes, por vezes não menos qualificados, realizando seus trabalhos sem espaço na mídia comercial, que ainda mantém formatos semelhantes aos de quarenta anos atrás. É preciso atualizar também os conceitos de cultura e política para enxergar as novas formas de organização da juventude. Como propõe Gilberto Gil em entrevista no filme, é preciso “misturar as sementes para ver no que dá”.
Por Aline Carvalho
Publicado também em:
Revista História da Biblioteca Nacional
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