quarta-feira, 4 de março de 2009

o homem com a câmera

O acontecimento mais importante da linguagem audiovisual, neste início do século 21, é a evolução artística do documentário. Um fenômeno alimentado por ousadia estética e transgressões, superação de dogmas, superposição e diluição de gêneros acontecendo neste momento de câmbios profundos na atividade, de natureza tecnológica e industrial. Estão circulando na internet, nos DVDs, na televisão, nos cinemas, nos iPhones uma quantidade enorme de documentários, muitos deles de concepção clássica e muitos deles de concepção inovadora, revolucionária, extrapolando os limites de registro e edição que definiam o território documental no século passado. São obras audiovisuais que mesclam o registro da realidade com cenas ficcionais, animação, videoarte, clipe musical, chroma key, efeitos especiais. Desdobram-se por vários tipos, vários comportamentos de realização:
documentário de arquivo, documentário de encenação (na linha de Flaherty), documentário espontâneo, docudrama, docfic e outros, além dos produtos híbridos, misturando distintos
comportamentos. Ainda são classificados como “documentários” mas provavelmente serão rebatizados em algum momento, há teóricos e documentaristas que preferem classificá-los como ensaios, como “cine-ensaios” .
Essa explosão da linguagem documental é o corolário, o resultado da posta em prática do entendimento alcançado em meados do século passado de que documentário não é reprodução da realidade, inclusive porque um registro isento da realidade é impossível, mas sim a expressão da verdade de quem faz o documentário. O que importa, o que interessa, é a qualidade da verdade de cada documentarista, a qualidade humanista de seu ponto de vista, de sua apreensão particular e de sua opinião sobre a vida, a sociedade, a humanidade, a civilização, o planeta. Essa nova linguagem começou a ser forjada por artistas maiores do cinema desde os anos 1920, antes do entendimento generalizado de que documentário é visão particular, quando apenas esses precursores pensavam assim — documentaristas como o fracês JeanVigo (“documentário é um discurso ilustrado”), o russo Dziga Vertov (“cinema olho, cinema verdade”), o holandês Joris Ivens (que considerava a poesia como componente essencial do
documentário) , os americanos Robert Flaherty (que transformava personagens em atores nos anos 1930) e Orson Welles (contrapondo realidades e imitações, verdades e mentiras em F for Fake, de 1974).

Nessa linhagem de artistas maiores, ou seja, de artistas que inventam linguagem, que descobrem novos caminhos, que alimentam a evolução estética e a evolução da comunicação humana, tem lugar de honra o cubano Santiago Alvarez e seu cinema transgressor, radical,
panfletário. Foi o último dos grandes mestres documentaristas do século 20, produzindo até o último dia de sua vida, em 1998, ano em que realizou dois documentários e completou sua impressionante filmografia de mais de cem documentários e seiscentos Noticieros. O
último dos grandes e também o mais instigante, o que mais impactou os jovens cineastas da segunda metade do século passado e o que deixou mais influências na revolução estética do documentário que está acontecendo neste momente. Santiago inventou o clipe, utilizou cenas
ficcionais distorcidas, fez reconstituição de fatos com atores, utilizou dramática e visualmente as palavras, explodiu e implodiu a imagem com um grafismo inédito no cinema e incendiou a reflexão e a percepção teóricas ao inventar e defender o conceito Informaturgia, a dramaturgia da informação, a organização artística de fatos, imagens e opiniões.


Ele dizia e demonstrava na prática que não lhe interessava registrar e sim “participar da realidade”. Sobre o ponto de vista individual, a verdade de cada um na tela, era muito claro: "yo informo de acontecimientos a partir de ideas que tengo sobre esos acontecimientos". E certeiro, ao se referir ao futuro: “a impaciência criadora do artista produzirá a arte dessa época”. Essas declarações estão em entrevistas à revista Cine Cubano nos anos 1960 e no livro El Ojo de la Revolución-El Cine Urgente de Santiago Alvarez, de Amir Labaki, 1994. Não está registrado (a não ser que ainda exista uma entrevista que deu à Televisión Cubana nos anos 1980), mas muita gente ouviu de sua própria boca como se definia como documentarista, como
artista: “soy politikón y erotikón”. Pólis e Eros: a interação com a sociedade, com a civilização, com a história e o progresso fundida ao amor consciente, ao mito de Eros/Psique, carne e espírito, coração e consciência, real e imaginário, dualidade motora da Arte e dos artistas.

Pois, o que temos agora na internet e nas outras mídias é uma colheita da semeadura de Santiago, da sua teoria e prática da Informaturgia, do casamento da objetividade com a subjetividade, das propostas de linguagem que estão em Now, LBJ, Hanoi Martes 13, La
importancia universal del hueco, La soledad de los dioses. Essa nova onda de documentários criativos (assim também estão sendo chamados) e/ou ensaios audiovisuais é a mais importante arte contemporânea. É a única manifestação artística vestida com os parâmetros do século 21,
por superar e digerir a dualidade audiovisual do século 20 (real/imaginá rio, documentário/ ficção) e por estar na vanguarda da utilização das novas tecnologias da comunicação. É a manifestação que abre o caminho para uma nova etapa do Cinema, para uma arte audiovisual capaz de filosofar e que já está sendo chamada de Oitava Arte. Atrás desse cenário o que vejo é Santiago em seu campo de luzes, sorrindo e semeando.

Orlando Senna

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Catálogo do Festival Internacional de Documentales Santiago Alvarez In Memoriam

10ª edição – Santiago de Cuba, 8 a 13/3/200


Veja mais uma produção do ICAIC!

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