quinta-feira, 10 de setembro de 2009

Hermeto Pascoal quer sua obra difundida e libera todas as suas 614 canções para gravações em CD

Com um bilhete escrito de próprio punho, ilustrado pelo desenho de um sorriso, o músico Hermeto Pascoal deu o seu recado: liberou, para gravações em CD, todas as suas músicas já gravadas. São 614 composições. “Aproveitem bastante”, arremata ele, tornando-se protagonista de mais um capítulo da história dos direitos autorais, que toma novos rumos depois da internet.

O gesto de Hermeto firma o seu passo no território do que hoje se chama de cultura livre: aquela que defende que todo bem cultural, científico e tecnológico produzido pertence à sociedade – e não exclusivamente ao seu criador. “Já terminou o tempo em que as gravadoras tinham o direito de comercializar as minhas músicas, pois eu mesmo quis cancelar os contratos que tinha com elas”, diz Hermeto. Além disso, ele explica que a sua intenção é a de facilitar para que seus “amigos de som, os músicos” possam gravar cada vez mais a sua obra, “sem burocracias e sem custos”. O mesmo artista que, em 1973, gravou um disco com o nome de A Música Livre de Hermeto Pascoal, agora devolve ao mundo o que diz ter aprendido com ele: música.

Menino Criativo


“Meu nome é Hermeto Pascoal. Nasci em 22 de junho de 1936, no Olho d'Água da Canoa, estado de Alagoas. Sou filho de Pascoal José da Costa e Vergelina Eulália de Oliveira”, escreveu Hermeto, no prefácio de seu livro Calendário do Som (editora Senac e Instituto Itaú Cultural, São Paulo, 2004).

Seria improvável imaginar que, no interior nordestino, um filho de agricultores, albino e de olhos frágeis, pudesse se tornar um gênio da música, com discos gravados no Brasil e no exterior, reconhecimento mundial e agenda de shows, no auge dos seus 72 anos, mais do que concorrida. No entanto, foi ali, naquele canto de mundo, na época sem luz, água encanada nem nada, que o pequeno Hermeto encontrou aqueles que costumam ser os seus maiores parceiros musicais: pássaros, bois, porcos, cavalos, formigas, o barulho do vento, do mato, da chuva.

Em uma de suas muitas histórias com animais, conta da vez que assustou vizinhos porque estava de ouvido no chão tentando escutar o ciscar de patas das formigas.

Ainda menino, usou de um talo de um pé de jerimum (como é chamada a abóbora, em sua terra) para improvisar um pífano e tocá-lo para os passarinhos. Quando ia se banhar na lagoa, também se demorava tocando na água. As sobras do material do seu avô ferreiro iam parar num varal que, tilintando, gerava sons. Assim passou sua infância, recheada de histórias pitorescas.

O primeiro instrumento que Hermeto aprendeu a tocar foi uma sanfona, de oito baixos, de seu pai. Tinha entre sete e oito anos de idade. Com seu irmão mais velho, José Neto, passou a tocar em festas de casamento, forrós em pé de estrada.

Revesava com o irmão a sanfona e o pandeiro. Em 1950, com 14 anos, foi para o Recife com a família e ganhou trabalho se apresentando em programas de rádio. Depois, com o irmão e o sanfoneiro Sivuca, ambos albinos, formou o trio O Mundo Pegando Fogo. Em 1958, Hermeto morava no Rio de Janeiro, tocando no trio Pernambuco do Pandeiro. Três anos depois, foi para São Paulo. Nessa época, trabalhando na noite, já sabia tocar piano e flauta com muita maestria.

No Quarteto Novo, fazendo parceria com Airto Moreira, Hermeto ajudou a música Ponteio, de Edu Lobo, a ganhar o primeiro lugar no 3º Festival de Música Popular Brasileira da TV Record, em 1967. A convite de Moreira e de Flora Purim, viajou para o Estados Unidos e gravou por lá dois discos, em que atuou como compositor, arranjador e instrumentista. Tornou-se amigo de grandes jazzistas, entre eles nada menos que Miles Davis, com quem gravou duas músicas: Nem um Talvez e Igrejinha, ambas no álbum Live Evil (1970), de Davis.

De lá até hoje, o tempo parece ter passado rápido para Hermeto, músico que chega a compor uma música por dia. Foram inúmeros shows pelo Brasil e pelo mundo, parcerias e histórias das mais diversas. Uma delas aconteceu em março de 1995, quando apresentou uma sinfonia no parque do Sesc Itaquera, na cidade de São Paulo. Para esse espetáculo, Hermeto inventou instrumentos gigantes, que foram distribuídos pelo parque. No mesmo ano, um convite da Unicef o levou à cidade de Rosário, na Argentina, onde se apresentou para duas mil crianças. Detalhe do concerto: os músicos tocaram dentro de uma piscina que, invenção de Hermeto, foi montada no palco.

Livre, na Internet

Não faz muito tempo que computador e internet eram assuntos pouco conhecido de Hermeto. Ao lado de Aline Moreira, sua parceira musical e de vida, ingressou no mundo digital. Aline organizou quatro sites com informações sobre as formações musicais do artista: Hermeto Pascoal e Grupo, Hermeto Pascoal Solo, Hermeto Pascoal e Big Band, Hermeto Pascoal e Orquestra Sinfônica, além, claro, do duo com ela, que se chama Chimarrão com Rapadura. Foi Aline, ainda, a responsável por apresentar ao artista a ideia de cultura livre – algo que, embora desconhecido, já soava tão familiar a Hermeto, que costuma dizer que suas músicas, quando prontas, são jogadas ao vento.

Aline responde aos e-mails endereçados a Hermeto Pascoal, como foi o caso desta reportagem à revista ARede. Ela agradece aos jornalistas por divulgar essa “tão generosa atitude de Hermeto”, se referindo ao seguinte recado deixado no site do artista: “O músico que desejar gravar um CD com algumas ou várias composições de Hermeto Pascoal já lançadas basta imprimir sua autorização, acessando a página “licenciamento” deste site!”. A página “licenciamento” nada mais é do que o bilhete escrito de próprio punho, liberando suas músicas para gravações totais ou parciais. O gesto remete, de alguma forma, a um pensamento que Hermeto expressou, em 1996, em outro recado, dessa vez rabiscado no rodapé de uma partitura (publicada no livro Calendário do Som): “A vida é linda porque estamos sempre juntos. Tudo de bom, sempre”

Por Mariana Lacerda

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