Célio Turino
Autoentrevista?
No filme The Commitments, de Alan Parker, há um personagem que dá entrevista a si mesmo, imaginando o dia que sua banda irlandesa de blues será famosa. Gostei da forma narrativa de sua conversa com o espelho e resolvi usa-la para apresentar minhas inquietações, as conversas comigo mesmo, abrir o código fonte.
Código Fonte?
O Ponto de Cultura tem os mesmos princípios do software livre, é um código aberto.
Quais princípios?
Generosidade intelectual, trabalho colaborativo, mutabilidade, criação comum.
Em que se sustenta um Ponto de Cultura?
Na autonomia e no protagonismo social.
Quando um Ponto de Cultura se realiza?
Quando se articula em rede.
Há desenvolvimento?
Quanto mais redes intercaladas maior o desenvolvimento.
Que desenvolvimento?
Das mentalidades, dos comportamentos, da economia, da cultura, dos valores.
Explique melhor.
Cada rede forma um conjunto que se intercala a outros. A influência se dá a partir de Zonas de Aproximação, que atingem os Pontos mesmo quando as pessoas de um Ponto não estejam participando de uma rede específica.
Que Zonas são estas?
Pessoas de uma rede em gênero podem participar de redes de Hip Hop ou Cultura Popular. Deste entrelaçamento surge a Zona de Aproximação. Foi Vygotsky quem percebeu isto ao observar o desenvolvimento das crianças bem pequenas; a este fenômeno ele deu o nome de Zona de Desenvolvimento Proximal. Prefiro Desenvolvimento por Aproximação, mais adequado ao jeito brasileiro de ser.
Como se dá a mudança de uma rede sobre outra?
A rede de gênero pode influenciar na modificação de comportamentos machistas nas redes de Hip Hop ou de Cultura Popular, que trazem consigo muitos preconceitos, são machistas, sexistas, por exemplo. Por outro lado, a Cultura Popular pode realinhar elementos da tradição. E a menina que faz RAP (Ritmo e Poesia) percebe que seu avô também faz ritmo e poesia com repente, coco, embolada; com isso ela pode criar um novo ritmo musical, o rap/repente, unindo tradição e emancipação.
E a Arte, como fica?
Outras redes, ou conjuntos, aglutinam-se pelo apuro estético; uma rede de experimentação em linguagens artísticas, dança contemporânea ou teatro de bonecos. Oferecem sua mensagem: “sem qualidade artística, sem encantamento, não se vencem barreiras, não se quebra estereótipos, não se toca o coração”.
Arte pela Arte?
Outras redes, ou conjuntos, aglutinam-se pelo compromisso ético, uma rede de meninos e meninas de rua, trabalhos socioculturais, assentamentos rurais. Eles dizem: “sem compromisso com seu povo, de pouco adianta a arte”.
Como a mensagem de uma rede chega à outra?
Entrelaçando conjuntos, que se aproximam por ondas até atingir pontos bem distantes. Com muito jeitinho, jeitinho brasileiro.
Exemplifique concretamente.
O prêmio Interações Estéticas, para residências artísticas em Pontos de Cultura, com resultados artísticos conjuntos em 90 Pontos. A Central de Intercâmbio Ponto a Ponto, para troca de experiências entre Pontos.
Há como permanecer imune, neutro?
Assim como é impossível observar um mesmo rio, pois suas águas nunca serão as mesmas, não se pode entrar num rio sem modifica-lo.
E quando os conjuntos se fecham em si mesmos, ou se relacionam apenas com assemelhados?
Neste caso se formam os fundamentalismos. Infelizmente a história está repleta de conjuntos que se fecham.
Como romper com o Fundamentalismo?
Para além da Identidade é preciso praticar a Alteridade.
Identidade?
Fundamental (de fundamento), pois sem Identidade as pessoas e grupos não conseguem dizer quem são. Mas Identidade sem Alteridade é insuficiente.
Alteridade?
Se reconhecer no outro, por mais diferente que seja.
Como se pratica Identidade e Alteridade ao mesmo tempo?
Não há fórmula, mas, com jeitinho, o Ponto de Cultura pode promover esta adição.
Adição?
Uma operação aritmética muito simples: Identidade + Alteridade = Solidariedade.
E a Cultura?
Palavra difícil, são tantos os conceitos.
Após 5 anos teorizando e implantando Pontos de Cultura, qual o seu conceito?
Cultura acompanhada por 3 ‘Es’:
Estética
Economia
Que economia?
A solidária, com trabalho compartilhado, comércio justo e consumo consciente.
Como obter recursos para esta economia?
Com respeito ao meio ambiente, ao trabalho humano e à criatividade.
E a acumulação, como fica?
Nossa lógica é outra, a do bem comum. Esta é a diferença entre livre iniciativa no Capitalismo (voltada para a acumulação do Capital) e a livre iniciativa no Comunismo (voltada para o Bem Comum).
Bem Comum?
Sim, os recursos naturais, a inventividade humana, a terra, a água, o ar.
Todos Mercadoria.
O Ar ainda não, mas pode virar mercadoria. No futuro talvez alguém invente uma forma de ganhar dinheiro com redomas de ar puro em um mundo poluído. Minha avó dizia: “ainda vão cobrar o ar que respiramos”. Mas não precisa ser assim, nem sempre foi assim. Para as gerações passadas seria impensável transformar água, fonte vital de vida, em Mercadoria. No final do século XX, em Cochabamba, na Bolívia, houve a primeira insurreição popular contra a privatização da água e este processo de mercantilização da vida; e venceram. A água voltou a ser um bem comum. Foi quando o avanço do neoliberalismo encontrou seu primeiro freio.
Bem Comum.
... também o transporte público, a educação, o lazer, a saúde, a cultura...
Bem Comum.
Daí Comunismo.
Comunismo?
O comunismo não se realizou, as experiências do século XX identificadas como comunistas não o foram. Houve experiências de Democracia Popular ou Socialismo com forte intervenção do Estado, muita burocracia e pouca liberdade de iniciativa individual. A superação do Capitalismo no século XXI se dará pela cultura do Bem Comum.
Seria o Socialismo do século XXI ?
Uma alternativa em gestação, mas ainda não tem um conceito preciso. O positivo na idéia é que se insere no contexto anti-neoliberal e de democratização da América do Sul, um socialismo mestiço. Mesmo assim prefiro a expressão Comunismo, por estar etimologicamente alinhada à Bem Comum.
E o Estado?
Em nosso atual estágio civilizatório, o Bem Comum não se realiza sem Estado. O que precisamos definir é qual Estado queremos.
Qual Estado?
O Estado mínimo, insensível às necessidades das pessoas e subordinado à mercantilização da vida, agente da financeirização do mundo e da acumulação do capital, começa a ruir. Por outro lado, não nos interessa a volta ao Estado pesado, intervencionista e burocrático. É preciso um Estado de novo tipo, ao mesmo tempo leve e presente, ampliado e gasoso. Um Estado Vivo.
Estado Vivo ou Gasoso?
Gasoso porque leve como o ar, comum e presente. Fonte de vida e liberação de energias. Vivo, porque orgânico, em constante mutação.
Não se desmancha?
O que é sólido se desmancha; o gasoso se espalha, se mistura; o que é vivo se recria.
Como se faz este Estado?
Se fazendo, sem modelos. O Ponto de Cultura é uma pequena experiência de um Estado que aprende a conversar com o povo e de um povo que se empodera.
Qual a principal característica?
Um Estado Educador.
Quais paradigmas precisariam mudar?
Da Estrutura para o Fluxo.
Do Estado que impõe para o Estado que dispõe.
Do Estado concentrador (de riquezas e informações) para o Estado que libera energias.
Do Estado impermeável para o Estado penetrável.
Do Estado que esconde para o Estado transparente.
Do Estado que controla para o Estado que confia.
Do Povo que transfere responsabilidades para o Povo que participa.
Da desconfiança à confiança mútua, gerando responsabilidade e liberdade.
Da Política Pública focada na carência à Política Pública focada na Potência.
Exercícios.
Exercícios de civilização.
Carência/Potência?
Talvez a chave seja esta mudança de paradigma. As políticas públicas são formuladas a partir do critério da falta, da vulnerabilidade. O Ponto de Cultura parte do oposto, parte da potência.
É simples.
É simples, mas tenho muita dificuldade em convencer a burocracia de Estado. Um gestor de Ponto de Cultura, Afonso, do Maracatu Estrela de Ouro, de Aliança, Zona da Mata pernambucana, compreendeu na hora: “...um Ponto de Cultura não se cria, se potencializa”.
Como sintetizaria a teoria do Ponto de Cultura?
Com uma equação matemática.
Matemática?
Quando compreendemos que a matemática estuda a vida a partir de objetos abstratos e de suas relações, as equações tornam-se simples.
O Ponto de Cultura pode ser representado em uma equação matemática?
PC = (a + p) (ar)
Ou
(a + p) (ar) = Empoderamento Social
Em linguagem verbal: ao somar Autonomia com Protagonismo o Ponto de Cultura ainda não se realiza, pois é necessário que exponencialize sua potência em um conjunto de Articulações em Rede (quanto mais redes, melhor) para que alcance o Empoderamento Social.
Ponto de Cultura como ponto de empoderamento social?
E atrator de iniciativas.
Atrator?
Na teoria do Caos há os estranhos atratores, pequenos pontos que aglutinam energias, alteram rotas.
O Ponto de Cultura funciona como um atrator?
Sim, pelas ações do programa Cultura Viva.
Quais ações?
Cultura Digital, Cultura de Paz, Pontinhos (Pontos lúdicos, de cultura infantil), Griôs, Escola Viva, Cultura e Saúde, Juventude.
Estas são ações do programa Cultura Viva, mas e as ações da sociedade?
São infinitas as possibilidades. No Fórum Social Mundial a Aldeia da Paz foi montada por iniciativa de um Ponto de Cultura, a Caravana Arco Íris. Eles praticam agroecologia, trabalhos colaborativos, biodigestor, filtragem natural da água usada, devolvendo-a limpa nos rios. Na seqüência, querem aplicar este conhecimento junto às comunidades ribeirinhas da Amazônia. Certa vez conheci uma moça em um Ponto de Cultura, ela falava das múltiplas possibilidades de uma planta, o Agave (sisal): ‘quem sabe a cura para a AIDS, note!, Agave, HIV’. Quem sabe.
São as ações que mantém a pulsação do Ponto de Cultura?
Sim, do contrário ele se fossiliza, burocratiza, necrosa. Ponto de Cultura é vida e vida é fluxo.
Mas como as Ações se encontram; como os Pontos se interligam?
A Teia. Um construir constante que também precisa ser presencial, unindo em um só lugar, Encantamento (mostra artística dos Pontos de Cultura), Reflexão (seminários e registro) e Organização (Fórum dos Pontos de Cultura).
E entre as Teias?
Encontros de Conhecimentos Livres, o iTeia, os Portais, as redes colaborativas, os encontros entre redes temáticas, os programas de TV, ‘Cultura Ponto a Ponto’, ‘Ponto Brasil’, ‘Amalgama’, a webrádio Cultura Viva.
Programas de TV?
O único elemento comum a todos Pontos de Cultura é o Estúdio Multimídia (uma câmera de vídeo, equipamento para gravação musical e 3 computadores operando como ilha de edição). Colocamos os meios de produção nas mãos de quem faz cultura. Agora temos base para uma nova conquista: os meios de difusão.
Cultura e Comunicação?
Uma não sobrevive sem a outra. Com os Pontos de Cultura abrimos uma fenda no monopólio das comunicações e a polifonia começa a ser uma realidade.
Polifonia?
E conjugada na primeira pessoa, na voz de quem faz, sem intermeios.
E o que mais?
Pontos de Mídia Livre. Uma nova rede que se abre, com muitas vozes e muitos meios; do mimeógrafo e estêncil aos blogs, rádios e TVs comunitárias. Com o prêmio Pontos de Mídia e Laboratórios de Mídia Livre preparamos os Pontos para mais um salto. Quem sabe um salto quântico.
No início de 2009 são 1.000 Pontos de Cultura em todo o Brasil e até 2010, 3 mil. E depois? Basta aumentar os Pontos?
A quantidade gera o salto qualitativo. Com a fervura a água passa do estado líquido para o gasoso; ou para o sólido, em baixas temperaturas. O salto qualitativo já se coloca.
Que salto é este?
Cultura e Política.
Cultura e Política?
Uma nova cultura política como base para a resignificação da Política. Política como meio, Bem Comum como fim.
A Cultura assumiria uma centralidade na Política?
É isso. Da mesma forma que os movimentos populares e sindicais estiveram para a redemocratização do Brasil há trinta anos, a Cultura pode estar para a nova política do século XXI. Com uma diferença essencial. Enquanto os movimentos associativos/reinvindicativos são movidos por interesses (legítimos, mas mesmo assim, interesses), a Cultura se move por valores. Política movida por interesses, facilmente resvala para a política interesseira. Não é o que vemos na política parlamentar dos tempos atuais? Uma política do Bem Comum tem que ser movida por valores.
Cinco anos não é pouco para isso?
Foi o meu tempo. Que outros continuem, que os Pontos se empoderem.
O que falta ainda?
Sistematizar a experiência, documentar, apurar os conceitos, consolidar a teoria. Difundir a experiência, ganhar apoios, compreensão. Ir além do Brasil. E que os Pontos se espalhem.
E um marco legal?
No início não cabia, perderíamos tempo e o programa se engessaria em uma abstração. Foi preciso fazer, experimentar e construir os conceitos na medida que os fenômenos fossem se apresentando. Agora há base para propor.
Que lei?
Algumas leis. Uma Lei para os mestres e griôs, um estatuto e uma bolsa que reconheça e valorize o saber popular. Outra Lei para o protagonismo juvenil, que garanta o pagamento de uma bolsa por um ano para que jovens possam se capacitar no desenvolvimento de trabalhos comunitários. A terceira Lei para a Autonomia e Protagonismo Social, que assegure meios ágeis para transferência de recursos e construção de diálogos entre Estado e Sociedade.
Qual o resultado destas leis para a cidadania?
Quebra de hierarquias, construção de novas legitimidades, reequilíbrio entre poderes. Com a Lei dos Mestres e Griôs pode-se promover uma religação intergeracional, levando o saber popular para a escola e valorizando o conhecimento de parteiras, mestres de capoeira, rezadeiras e de todos os mestres e de todas as culturas transmitidas pelo conhecimento tradicional. Com a Lei do Protagonismo Juvenil, centenas de milhares, quem sabe um milhão de jovens por ano, podem passar por um processo intenso de trabalho colaborativo e comunitário (uma bolsa mensal de R$ 250 paga por um ano para um milhão de jovens custaria R$ 3 bilhões, parece muito, mas é menos que o financiamento governamental para compra de automóveis). Após 20 anos o significado disto para a cidadania seria inestimável. Com a Lei da Autonomia e Protagonismo Social (que antes imaginei cultural, mas percebi que deve ser ampliada para todas ações da sociedade) as comunidades poderão resolver localmente os seus problemas e, articulando-se em rede, ampliar este exercício até a plena simbiose entre Povo e Estado. Lei Brasil Vivo seria um bom nome.
Por que ainda não foram propostas?
Porque precisam ser construídas, como resultado da vontade e soberania popular. Para ser coerente com a teoria dos Pontos de Cultura, estas leis precisam ser de iniciativa popular, com coleta de assinaturas. Faze-las como leis de iniciativa do governo ou de parlamentares seria uma apropriação indevida de um processo que vem de baixo e que fervilha pelo Brasil.
E também porque elas entram em contradição com a atual lógica do Estado e dos poderes constituídos.
De certa forma sim. Mas “...não há nada mais forte que as idéias cujo tempo chegou”, foi assim que Victor Hugo percebeu o seu mundo no século XIX.
Agora fale de você.
Eu? Eu sou um Ponto de Cultura. Todos podem sê-lo, todos são.
Faltou alguma coisa?
Sempre falta. Gostaria de pedir desculpas àqueles que entraram neste processo sem conhecer todas as condições prévias. Aos gestores dos Pontos de Cultura que sofreram com nossa falta de estrutura. Também aos servidores da SPPC, agora, Secretaria da Cidadania Cultural, tão poucos e tão sem condições materiais e institucionais para realizar o trabalho. Eu queria fazer, sabia que faltava compreensão, tempo e estrutura, mesmo assim fui fazendo, pois no íntimo sabia que a sociedade (ao menos parte) responderia ao chamado. A porta entreabriu, entrei. Não podia perder a oportunidade.
Por fim.
A Cultura não tem fim.
Obrigado.
Obrigado.
e quando um PONTO DE CULTURA é escolhido por interferencia de deputado?
ResponderExcluirCOELHO